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Quase um Lar

Ane C.

Sobre memórias, canções e vazios.


Imagina isso. Eu tenho quatro ou cinco anos e eu estou sentada no chão. Não, no o chão não. Na coleção de vinis do meu pai, que agora está espalhada pelo chão. Eu... eu não sei. Eu fiquei deslumbrada com as imagens, as cores das capas, a textura dos discos. Até o cheiro me fascinava.


Eu nunca tinha notado eles ali antes. Eu nunca tinha visto um daqueles antes.Eu nem sabia para que servia. Então eu fiquei curiosa, quis explorar. E eu não sei quanto tempo a minha exploração durou. Mas eu sei que depois de um tempo, a sala parecia uma cena pós roubo. Eu me lembro exatamente de quando eu percebi o tamanho do desastre.


Eu ouvi os passos dele se aproximando. E eu sabia que era ele, porque o ritmo dos passos dele era inconfundível. Meu coração acelerou e de repente ficou difícil de respirar. Os meus olhos ficaram marejados e um soluço ameaçou sair da minha garganta, mas aí ficou preso. Eu congelei. Ele vai me machucar. Ele vai me machucar. Ele parou na minha frente, quieto e sério. Ele observou a coleção de discos espalhada pelo chão. E aí depois ele disse: "Escolhe um." Eu passei o primeiro que eu achei. Nem vi. As minhas pernas tremiam de medo.


Foi aí que eu descobri que os tais discos eram mágicos. Ele colocou o disco no toca discos, sentou-se na poltrona e me falou sobre ritmo, melodia, blues... Soul. Então ele silenciou novamente. Um dia inteiro sem choro, sem grito. Não houve nenhuma porta batendo, ninguém correndo. Foi um dia sem medo.


Daquele dia em diante, eu ansiava pelas manhãs de sábado, quando os discos tocavam e eu podia sentar ao lado do meu pai, conversar com ele, ouvi-lo. Eu podia ter um pai! Mas a tristeza voltava à noite, quando ele saía para encontrar os amigos. Porque eu não sabia quando eu o veria novamente. Quem voltava, tarde da noite, não era meu pai. Era uma besta, uma fera vestindo o corpo dele.


Meu pai me ensinou a ouvir a dor, a alegria, a nostalgia, a rebelião e a euforia gravada nas melodias. Mas eu não tinha ideia do que a letra dizia. Eu ficava ali tentando repetir as palavras, os sons que eu ouvia nas músicas. Eu sonhava em cantar com elas.


No meu primeiro dia de escola, na quinta série. Eu vi uma jovem entrar na nossa sala e ela estava de salto. Ela era bonita. Era a professora Silva. Ela disse que era nossa professora de inglês. Ai, para mim ela era um ser mágico que sabia coisas que eu nunca imaginei que existissem antes. Alguém capaz de dar sentido aos zumbidos que até então eram incompreensíveis para mim.


A senhora Silva foi a janela pela qual eu olhei e descobri que o mundo era vasto. Em algum momento ela também se tornou um espelho para o qual eu olhava e via partes de mim no futuro. E quando os sons se tornaram palavras com significado, a minha alma ganhou vida. E eu cantei para celebrar.


Eu cheguei aqui com a brisa fresca do outono. Eu vim para ver as folhas secas e coloridas, ou talvez para fugir da fera das tardes quentes de domingo. Mas eu nunca deixei de sentir saudade das manhãs de sábado. E eu carrego esse buraco aqui no peito. A porra da besta matou o meu... matou as nossas manhãs de Soul.

Mas eu ganhei. Eu venci! Hoje eu sou janela e espelho . E aos sábados eu coloco Soul para tocar. E eu danço, e eu canto... aqui na terra das canções que meu pai me ensinou a amar.


Todos os sábados, todos os cômodos desta casa se enchem das melodias das velhas canções de Soul, de Blues. E quando eu estou quase feliz, me ocorre que a criança morreu, que o pai morreu, que a coleção de vinil se perdeu e que eu nunca mais tive um lar.


A.C.


Transcrição do episódio "Quase um Lar", adaptação do roteiro Almost a Home também escrito por mim.


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