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(Ella) O vestido de crochê

Ane C.

Você já se pegou num momento em que uma decisão aparentemente insignificante levou a uma enxurrada de memórias inesperadas? Quando Ella comprou impulsivamente um vestido de baixa qualidade em uma liquidação, foi transportada de volta para a lugares da infância que revelaram lições poderosas que suas ancestrais lhe ensinaram sem nem perceber.




Aconteceu que em um dia escaldante, eu decidi me refugiar do calor insuportável em uma loja aleatória que encontrei pelo caminho. Mal esperava eu que essa decisão espontânea me levasse a esbarrar no vestido de crochê mais charmoso da promoção. Comprei sem pensar duas vezes e sem provar. Para minha alegria, serviu como uma luva. Foi mesmo amor à primeira vista! Porém, entretanto, todavia, assim que lavei o vestido ele encolheu e começou a desfiar. Deixei-o pendurado no armário por um tempo; cada vez que passava por ele, ponderava comprar agulhas de crochê e linha para consertá-lo, mas logo o esquecia. Fazia muito tempo desde a última vez que fiz crochê, assim que meu pobre vestido ficou ali esquecido no meu armário. Eu simplesmente não conseguia descobrir qual fio ou gancho usar para consertá-lo.

Depois de quase um ano procrastinando, pedi ajuda à minha mãe. Enviei a ela uma foto do vestido e pedi orientação sobre como encontrar os materiais certos online. Ela teve a gentileza de me ajudar, ainda assim consegui comprar o fio errado. Desisti de consertar. Uma noite, porém, minha curiosidade sobre minhas habilidades de crochê superou meu perfeccionismo. E mal sabia eu que esse simples ato de curiosidade revelaria um tesouro de memórias e histórias sobre as mulheres da minha família.


Crescendo, sempre percebi uma tristeza silenciosa entre as mulheres da minha família. Embora eu não pudesse entender a causa por trás de seus olhares tristes, eu podia sentir a amargura e o ressentimento que permeavam seus silêncios. Naquela noite, quando segurei a agulha de crochê e linha em minhas mãos, parecia que meus dedos estavam já a esperar por esse momento; a alegria do crochetar voltou à minha vida e, com ela, lembranças da minha infância. Lembrei-me de sentar com minha mãe, tia, avó e bisavó na varanda durante dias quentes e úmidos. Conforme eu aprendia a fazer crochê, eu observava suas conversas enquanto tentavam determinar as melhores técnicas para fazer um tapete em crochê. Crochetavam peças decorativas e trocavam técnicas. Durante todo o dia, eu as observava desmanchando e refazendo as peças. Mesmo sendo criança, eu sabia que eles estavam tentando consertar algo para além de erros de crochê. Elas nunca o fizeram, no entanto.


Aquelas conversas de crochê muitas vezes serviam como um respiro para aquelas relações prejudicadas, um momento de alívio nas profundezas de mágoas. Além da tradição atemporal do crochê, transmitida de geração em geração, aquelas tardes guardavam resquícios de vínculos agressivos e abusivos entre mães e filhas. Parecia quase não intencional, como se uma segunda tradição surgisse entre essas mulheres – a de atacar fisicamente, usando seus filhos como válvulas de escape de raiva reprimida. Elas moldavam à força os caminhos de suas filhas, desconsiderando seus desejos, e as chatageavam emocionalmente, incutindo um sentimento perpétuo de culpa por sua própria infelicidade. No entanto, em meio às conferências sobre crochê e novelas na varanda, nenhuma palavra sobre ressentimento ou dor era mencionada. Como fosse aquele ato uma esfarrapada e rasgada bandeira de cessar-fogo no campo de batalha das relações mãe-filha.


Só que aí, num dia ordinário de verão, eu entrei em uma loja e impulsivamente comprei um vestido de baixa qualidade. E aquele ato aparentemente banal, me transportou no tempo, me fez revisitar memórias com minha mãe, a mãe dela e a mãe da mãe dela. Nas tardes quentes de outrora, enquanto crochetavam, as mulheres da minha família me mostraram inadvertidamente que eu não precisava buscar uma conexão limitada à varandas e fios de crochê. Observar e ouvir suas conversas me ensinou que aqueles que infligem danos não são necessariamente vilões irremediáveis. Muitas vezes, eles são simplesmente incapazes de oferecer algo melhor. Mas não é por isso que a gente precisa sentar e aceitar seu comportamento abusivo de forma passiva e silenciosa. Tem sempre a opção de se levantar e sair da varanda.


Aconteceu que por causa do calor de um dia ensolarado, eu descobri que me levando para as tardes de "crocheteo", minha mãe, mesmo sem intenção, me libertou. Como todas as filhas naquela varanda, em algum momento, me senti presa em um ciclo interminável de relacionamentos rompidos, onde tudo sempre parecia desmoronar. Porém, observando suas conversas e vendo a tristeza em seus olhos, escolhi caminhar para fora daquela varanda. Isso me permitiu criar minha própria história longe dali. Longe dos destroços escondidos no gosto amargo de silêncios carregados.


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